Dous textos para o centenario de Mário Cesariny
Xesús González Gómez.
O 26 de novembro de 2006 morreu, á idade de 83 anos, Mário Cesariny de Vasconcelos, o gran poeta surrealista portugués. Nacera o 9 de agosto do 1923. Este 2023 conmemórase, xa que logo, o centenario do seu nacemento. Esperamos que os editores compilen todos os seus textos e entrevistas ciscados aquí e acolá e que nunca se recolleron en volume, como esa carta que lle enviou en 1975 a José Saramago na que lle prometía, se o atopaba na rúa «uma sova». Ou os limiares e/ou presentacións que lle puxo a libros de outros e, sobre todo, a propias traducións (Rimbaud, Breyten Breytenbach, etc.) En fin, esperemos que, como fixo Perfecto Cuadrado coa poesía[1], se recollan todos eses textos do poeta portugués e poidamos, lectoras e lectores, desfrutalos este mesmo ano.
Como homenaxe a Cesariny, reproducimos unha carta aberta que enviou en 1983, ou sexa, hai corenta anos, ao Jornal de Letras, artes e ideas (número correspondente ao 11 de novembro do devandito ano). E outro texto do que daremos noticia máis adiante.
O máis curioso (sic) de todo é que os responsábeis de tal semanario incluíron a carta de Cesariny na páxina titulada «debate-papo», e titulárona de tal xeito que a lectora ou lector pode pensar doadamente (ou simplemente, pensar) que é un pequeno escrito do poeta a respecto do tema de que trata o texto, cando, en realidade, era unha carta á redacción de tal revista. Velaí a súa transcrición, cos títulos que lle endosaron na redacción do, daquela, semanario.
Mário Cesariny, a propósito de um colóquio
A Universidade continua mal cheirosa…
Lida hoje no JL a manchette «Surrealismo periférico no Canadá», e de Arnaldo Saraiva o artigo «Surrealismo português em colóquio no Canadá», peço-vos a publicação do seguinte:
O dr. Luís de Moura Sobral surgiu há uns anos (dois) em minha casa solicitando fazedura de slides de obras surrealistas que estivessem em meu poder. Achei bem, en primeiro e provavelmente único lugar, porque eu não os tinha e o dr. Sobral assentiu em entregar-me cópia das reproduções que proporcionei. O que não fez.
Depois desta, o dr. Sobral começou a ventilar as auras de uma exposição do surrealismo português na Universidade de Montreal, o que já achei pior, e acrescentou a ideia de uma participação minha no colóquio, ou colóquios, a serem efectuados. Animou-me, dizendo que igual convite estaba extenso ao bem conhecido dr. José-Augusto França[2], e que, como eu estaba ouvindo, tudo iría a ser uma coisa em bom.
Em debido tempo, escrevi para o Canadá ao dr. Sobral proibindo-lle o uso dos slides que tinha feito em minha casa, e bem assim qualquer utilização, em parede ou obra impressa, de fosse o que fosse meu no ditoso certame. Do mesmo passo, escrevi para a Fundação Gulbenkian, partícipe en Portugal de alguna recolha e envio de obras, dando conta da minha não autorização de envio.
Pelo artigo de Arnaldo Saraiva, fico a ler que o dr. Sobral incluiu coisas minhas nesta festa dele, Sobral. Se se confirma (se não é confusão de A. Saraiva), constato que à falta de inteligência se juntou a carência de lisura. Será a essa carência que A. Saraiva se refere quando diz no seu artigo que o dr. Sobral teve de vir a Lisboa, «às vésperas da inauguração» «para desbloquear o que era de desbloquear»?
Pela minha parte, ínfima, calculo, ante tão imponente desfile de reitores (dois), ministros e embaixadores (dois), directores de museus e de galerias (incalculável), representantes consulares (três) e mais dunha duzia de instituições, como revela a crónica de A. Saraiva, pela minha parte, digo, nada foi e nada está desbloqueado. Para mim e para alguns mais, a universidade, depois de XVI, continua a ser a instituição mais progresivamente mal cheirosa a corpo sem espírito e a espírito separado que a Europa inventou.
Mário Cesariny
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O outro escrito que reproducimos apareceu en Semanário, o 2 de agosto de 1987. Lembrábase neste hebdomadario lisboeta o cabodano do poeta Alexandre O’Neill (morrera o 2 de agosto do ano anterior), que pertencera ao Grupo surrealista de Lisboa. Publicábanse escritos de «primeiras firmas»: Antonio Alçada Baptista, Vergílio Ferreira, Almeida Faria, Vasco Graça Moura, Mário de Carvalho e Mário Cesariny. O escrito de Cesariny versaba sobre os amores entre Alexandre O’Neill e a escritora surrealista Nora Mitrani. (Sobre Mitrani, recoméndase o escrito de Jose Manuel Rojo, «Una tradición de la noche, la razón ardiente de Nora Mitrani», recollido en Lurdes Martínez (coord.): Bellas damas sin piedad. Mujeres del surrealismo, Madrid, Enclave, 2022, p. 115-136; recomendación que ampliamos a todos os traballos do libro.)
A VISITA DE NORA MITRANI
Eis uma oportunidade para corrigir severamente algo daquilo que disse ao voso Semanário não há muito tempo (em 18 de Outubro de 1986, em entrevista dada à Maria Elisa[3]) quase logo depois da morte de Alexandre O’Neill.
Estes sucessos –a morte– fazem-nos presa fácil de pompas fúnebres, sinceras quando o são por um amigo, e eu fui levado ao ditirambo fatal na pessoa de Nora Mitrani, tecendo (verdade que em honra do poeta), en volta desta romena que passou em Portugal algumas semanas, juntamente con Simon Watron (sic)[4] Taylor, en 1950, considerações tão poéticas, que quase excedi o que dela ditirambava o O’Neill no mesmo ano, em poemas como «Um Adeus Português», e outros, escritos mais tarde. Dava-a como uma espécie de Brunewilde enviada por Wotan para salvar o poeta do latinório cristista-católico de que Portugal era, naquela época, se não ainda hoje, temeroso exemplo.
Nada diso:
A surrealista romena Nora Mitrani foi emviada, sim, mas por André Breton, surrealista francés à época algo pasmado com a minha saída do «Grupo Surrealista de Lisboa» e a concomitante carta que eu lhe escrevera tentando narrar os motivos da minha «cisão» e imediata junção àqueles que a crítica circundante, sempre predisposta ao cómico, passou a apelidar de «Os Surrealistas», para os diferenciar dos outros que tinham grupo.
À carta que eu lhe escrevera, tão confusa, admito, como Portugal é un país confuso desde D. Maria II –é pouco: desde o chamado Renascimento– respondeu para o supragrupo o mesmo André Breton citando a minha carta e pedindo esclarecimento. O grupo esclareceu da seguinte maneira: «ce garçon (eu) est un pédéraste», p’lo que não só era um grande bem, era un saudável alívio eu ter saído do grupo.
Daqui para a frente nunca mais ninguém percebeu nada ou quis fose o que fosse, em França, do surrealismo português em Portugal, e houve de esperar-se trinta anos até que, com Édouard Jaguer e o Movimento e a revista Phases, em Paris, começasse a perceber-se alguma coisa.
Mas enquanto percebe-não-percebe, desliga-não-desliga, veio Nora Mitrani ver se percebía. Que Alexandre O’Neil não era pederasta, acho que percebeu. Quanto ao mais, que ainda assim era bastante, não viu nada. Talvez o O’Neil non a deixasse ver. Non é o primeiro caso de polícia estrangeira que, entrada em Portugal com o máximo de rigor detectivesco, fica apanhada pelo clima, pelas copas das árvores do Jardim Botânico. Mas –e esta é talvez a correção principal que me devo fazer– Nora Mitrani não era uma mulher bela, nem sequer bonita, nem interessante à vista ou ao contacto. Qualquer das mulheres, com que o O’Neill depois casou, ou conheceu, ou o que foi, seria mais interessante e bonita. Malpronta do corpo e de atitudes, dava ideia da rã antes do salto. As fotografias que temos dela confirmam-no.
Algum fascínio teria: sobre todos, o de ser uma intelectual e uma mulher livre, vinda da «cidade livre», como diz o O’Neill. Não sei se resulta chamar a atenção do presumível leitor para o facto, tão longínquo, de que nos anos 40, em Lisboa, a mulher não saía à rua, a não ser à hora, também convencional, de ir ao Chiado, às 5 e meia da tarde, para fazer compras e mostrar elegância. Fora disso, casada, solteira ou viúva, guardava o véu, isto é, estava em casa, enquanto o homem saía para tudo o que era café, fados e futebol. Era a Arábia, sabiamente amestrada por outro mafoma, o dr. Salazar. Quem, fora da hora certa, irrompesse na rua, podia ir dar à esquadra, sozinha ou acompanhada. Nem tanto seria preciso: qualquer passante poderia aplicar-lhe un correctivo, em forma de galanteio ou de maneira mais brutal. (Ainda na imagem: as «refugiadas», que haviam fugido da guerra e tornavam inaudito o descaramento de se atardarem sozinhas nas esplanadas e de fumarem en público.)
Sob esta Arábia toda, e muito mais que é pena não vir para o caso, Nora Mitrani encontrou no O’Neill o habitante do deserto arqui-sedento de águas tempetuosas e livres, e ele leu nela o rosto de uma Europa liberta, a Ocidente, de ditados políticos e de ditadores de costumes. Guardo comigo un texto poético colectivo, escrito então pelo O’Neill, pela Nora Mitrani e pelo Taylor, en Lisboa, o qual, significativamente, começa por falar dos efeitos do Simun, o vento ardente do deserto, e da sede insofrível que ataca as suas vítimas…
Quanto à «categoria» (é assim que se diz?: o «gabarito») da intelectual Nora Mitrani, nem eu, nesa altura (nem hoje) nem os meus companheiros de intentona surrealista, achámos que fose coisa de por aí além. No contacto que con ela tivemos, como na «conferência» que pronunciou na Casa das Beiras, nada vimos ou ouvimos que excedesse um surrealismo meramente escolar, sorbónico e bubónico. Pode ser comprovado no número 8 da extinta revista Critério, «Revista Mensal de Cultura», que publicou em Novembro de 1976, en tradução de Alexandre O’Neill, o texto da conferência. Mário Cesariny
[1] Mário Cesariny, Poesía, edição, prefácio e notas de Perfecto E. Cuadrado, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017.
[2] Coñecido crítico e historiador da arte que pertenceu ao Grupo surrealista de Lisboa. França, unha das bestas negras de Cesariny, foi en 1975 «vítima» dun panfleto distribuído en Lisboa polo poeta. O panfleto era unha folla, máis ou menos tamaño folio, en que se podía ler: O FRANÇA É PIOR DO QUE A NATO A A.I.C.A. É PIOR DO QUE A C.I.A. A «ARTE» É O PIOR DO QUE TUDO. Reproducíase un «Graal» e asinaba o «panfleto un BUREAU SURREALISTA. Junho 1975. Arriba de todo podíase ler «fóra os doutores», frase reproducida nos catro lados. (A.I.C.A. é a Asociación Internacional de Críticos de Arte.)
[3] Entrevista titulada: «Mário Cesariny de A a Z», na que o poeta vai definindo institucións, actos, artistas, poetas, etc.; por exemplo: «F, de Família»: «É o acto sexual praticado com un cadáver», que é unha das respostas do «Diálogo em 1948» entre João Artur da Silva e Mário Henrique Leiria. Ou «A, de Amor»: «É uma rua muito sosegada onde só se passou uma vez». A entrevista (sic), que ocupa as páxinas 32 e 33 do Semanário, complétase con diversas fotografías, un acrílico de Cesariny, un retrato a lapis deste, un poema de Maria Helena Vieira da Silva («O Mário e eu»), e un texto de Cesariny e o gran pintor surrealista António Dacosta, «O Norte de Europa» e un escrito do poeta titulado: «Da Morte Impossível (de Alexandre O’Neill)», en que escribe, sen en citar o seu nome, o seguinte de Nora Mitrani: «[…] Também ao O’Neill apareceu uma Brunehilde, enviada por Wotan para que destruísse a beleza só certinha do Olimpo greco-romano de que somos os farrapados rebentos –como país, porque como gente ou gentes somos outrém– penso com angústia nos ainda não alfabetizados, nos ainda maravilhosos “pobres de espírito”. Apareceu e foi-se, cos os seus “olhos altamente perigosos”, com a sua “luz de ombros puros”, onde vigorava “ainda o mais vigoroso amor”,tal ele a descreve em Um Adeus Português”. Era dose forte de mais para reclinados fillos de Palas Ateneia poupados aos horrores da Reforma, entregues “à estupidez do desespero sem boca” e vagamente lindos sob este céu azul e este mar…»
[4] Supomos que erro do linotipista: Simon Watson Taylor, surrealista inglés.